Dois Potes
- Aline Castanhari
- 18 de set.
- 3 min de leitura
Sobre Olhos, Dor e Janelas
A vida soa como dois potes desequilibrados: um cheio e outro vazio. E é quase automático se concentrar no vazio e esquecer totalmente o cheio. Desde que cheguei aqui na Escócia, tudo tem sido exatamente assim: meus olhos, minha mente, minha alma; tudo ficou penetrado, e paralisado, no pote vazio. E por todo esse tempo, meus sentidos não perceberam o pote cheio. Isso ficou esquecido, provavelmente escondido atrás de coisas entulhadas dentro do meu próprio armário. Perdido.
As coisas começaram a mudar nesses últimos dias. Nada de grande aconteceu. Na verdade, eu não acredito que grandes eventos tragam grandes mudanças. Mas sim as pequenas coisas, sabe, ordinárias partes da rotina que dificilmente são percebidas. E talvez isso tenha tudo a ver com o pote cheio.
Ontem eu percebi fortemente como o sol invade a minha sala, e como isso é lindo, especialmente para passar tempo no meu lugar favorito da casa: em cima de um velho baú debaixo da janela. Sentar sobre esse baú olhando para a janela, e ouvindo alguma boa música, é algo hipnotizante para mim. E a melhor parte é a vista: uma vista aberta onde eu posso ver as colinas. E em meu quarto há uma vista para o mar. É tão difícil conseguir um apartamento com uma vista aberta, muito mais difícil com vista para as colinas e para o mar. Sou muito contente por ter conseguido esse pequeno apartamento. Mas essa não é a melhor parte. A melhor parte é o meu “quintal”: a praia. A um quarteirão de casa está a ampla praia de Portobello. Para mim, o oceano é a coisa mais maravilhosa do mundo. Andar na praia, ver o mar, sentir o mar, ouvir o mar; é ouro para mim. Eu me sinto totalmente renovada. Mais do que isso, é como se o mar pudesse me trazer de volta para mim. Fazendo-me lembrar quem eu sou. Eu me vejo no mar. Algo livre, selvagem e vasto. E viver perto do mar é um sonho de infância, algo que eu sempre desejei. E agora é real.
Há algumas semanas eu estava comentando em meu Instagram sobre as dificuldades que tenho passado aqui. Um amigo me enviou essa mensagem: “Aline, você já conseguiu. Olhe onde você está! Sozinha. Você já conseguiu, já é vitoriosa. Tenha consciência disso.”. Confesso que não dei muito valor à essa gentil mensagem, porque tudo o que eu conseguia ver era o pote vazio. Agora eu percebo a profundidade disso. Agora vejo o pote cheio escondido, que estava ali, diante dos meus olhos, durante todo o tempo, mas eu estava cega. Agora entendo que eu consegui. Eu realizei o enorme sonho de me mudar para a Europa. Eu sonhei com isso por tanto tempo. Eu planejei isso por tanto tempo. E agora estou aqui. Eu estou aqui.
Nesta semana, fiz uma sessão de psicoterapia. Hesitei muito sobre isso, especialmente porque era uma psicóloga da abordagem psicanalítica, e eu estava consciente da necessidade de falar sobre minha infância e adolescência. Algo muito doloroso para mim. Mas eu fiz. E, meu Deus, eu chorei aos soluços durante toda a sessão. Isso me fez perceber quanta dor eu estava carregava. Depois de contar muitas coisas sobre minha vida à psicóloga, ela me disse: Nossa força vem das nossas raízes. É o processo natural de tudo. As pessoas que passaram por grandes dores na juventude, como no seu caso, geralmente são destemidas: não há nada que as detenham. Elas podem enfrentar qualquer coisa que vida trouxer. Vocês é assim. Mas você não está consciente da sua própria natureza. Se você lutar contra a dor, você estará lutando contra o processo. A dor é parte do processo. Você precisa aceitá-la. A dificuldade estará sempre presente, mas se você a aceitar, isso se diluirá aos poucos. Não fuja de quem você é. A dor faz parte de você, e isso não pode te derrubar.
Eu me sinto tão diferente agora. E foi apenas uma questão de perspectiva. É incrível como a vida coloca sinais no caminho. Agora eu começo a compreender. O pote vazio estará sempre lá: cheio de perdas, medos e ausências. Mas isso não é real, e por isso que está vazio. Mas ficamos desesperados por causa disso: meu Deus, está vazio, preciso encher, preciso perseguir coisas na vida para encher o pote. Mas o pote cheio está sempre lá: pronto, suficiente, estável. Nós somos suficientes. Independentemente do que fazemos ou onde estamos: somos suficientes. Há sempre algo genuinamente bom em nossas vidas, e em nós mesmos. Só precisamos perceber isso. E talvez o pote cheio só exista por causa do vazio. Um equilíbrio desequilibrado que sustenta a vida e nos coloca em movimento.





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